Uma Entrevista com o Dr. Dieter Duhm

Esta entrevista é a primeira de uma série de dezassete que integrarão o livro Os Diálogos da Descolarização: Sabedoria na linha da frente da batalha contra a mentalidade ocidental , do autor Alnoor Ladha (AL). Ele é activista, autor e Director Executivo do The Rules, um grupo internacional de activistas que se focam em endereçar as raízes dos problemas de desigualdade, pobreza e aquecimento global. Dr. Dieter Duhm (DD) é sociólogo, psicanalista, historiador e autor. Ele é co-fundador de Tamera, um centro de pesquisa da paz no sudoeste de Portugal. Autor do bestseller Fear in Capitalism  [Medo no Capitalismo] , e mais recentemente de Terra Nova: Global Revolution and the Healing of Love [Terra Nova: Revolução Global e a Cura do Amor].

AL: Em primeiro lugar, quero expressar a minha profunda gratidão a Tamera, pela pesquisa pioneira que têm desenvolvido aqui, por trabalharem neste campo há já tanto tempo, perante uma cultura defensiva e com avanços lentos. Esta é a terceira vez que aqui venho e, cada vez que regresso, sinto-me mais e mais imerso no campo que vocês co-criaram. Gostaria de começar com duas questões: (1) como podemos expandir este campo de cura e solidariedade, tanto vertical como horizontalmente (2) e que pensa que é necessário acontecer globalmente para que estas ideias se tornem mundialmente aceites?

DD: Obrigado pela sua presença. Necessitamos de duas coisas para que se difundam as ideias para um planeta Terra intacto: primeiro, a utilização correcta e devida dos sistemas globais de informação – Internet e outros media –, para a partilha de informação básica em serviço da libertação humana dos sistemas de poder político existentes. Esse é um caminho global que necessitamos de estabelecer, numa linguagem que possa ser entendida por todos e em todos os lugares. Simultaneamente, há ainda um outro nível de actuação onde alguns grupos à face da Terra estão a transformar o seu sistema interno de vida, onde os assuntos íntimos de sexo, amor, companheirismo, comunidade, autoridade, poder estão a ser resolvidos. Estes são grupos que encontram este lugar de verdade dentro de cada um e entre os seus membros, onde todas as dificuldades interpessoais são trabalhadas para serem ultrapassadas. Nós necessitamos de ambos estes níveis de actuação – os novos grupos para esta âncora interna, e o campo de informação global para uma âncora no mundo.

AL: É possível que isto possa ocorrer dentro dos próximos vinte anos? Está esperançoso?

DD: Eu apenas sei que é absolutamente necessário que ocorra. Pessoalmente, estou esperançoso mas entendo o quanto demora para efectuar tal mudança. Construir um campo global para a nova informação se difundir sempre falhou devido a conflitos dentro dos grupos. Fui um membro activo no movimento Marxista durante muitos anos, no movimento estudantil alemão. Percebi que nunca poderíamos combater a economia imperialista com o movimento Marxista enquanto os membros do movimento divergiam uns com os outros. Tem sido o mesmo processo nos últimos cinquenta anos.

A escultura representa o símbolo de Tamera e do Plano dos Biótopos de Cura na margem do grande lago de Tamera.
Eu acredito que nós, enquanto humanidade, estamos num ponto da nossa evolução em que a mudança pode ocorrer repentinamente. Estamos no meio de um processo de transformação que se está a acelerar exponencialmente. Muitas pessoas já estão a experienciar esta transformação. Estamos a chegar a um ponto onde poderemos começar a comunicar acerca deste processo e partilhar a nossa sabedoria através destes novos pontos nodais de mudança. Com base nisto, eu tenho esperança.

AL: Sim, esperança parece ser o único caminho. O desespero é um luxo para os privilegiados. Há a velha frase de Buckminster Fuller: podemos escolher entre a utopia e o esquecimento. Acha que as nossas opções se resumem a este binómio?

DD: Buckminster Fuller tinha toda a razão neste ponto. Ou vivemos a utopia ou morreremos, não há uma terceira opção. Uma grande parte da nossa cultura intelectual está à procura desse terceiro caminho, como os partidos Sociais Democratas. Eles não querem nem concretar a utopia, nem morrer, no entanto não há outra saída. Encontramo-nos globalmente, enquanto humanidade, neste ponto de tomada de decisão.

AL: De certo modo, os reformistas e os liberalistas são mais complicados que os reaccionários de extrema direita. Creio que está familiarizado com a deixa de Oscar Wilde, da obra The Soul of Man Under Socialism (“A Alma do Homem sob o Socialismo”), quando ele diz que os piores donos de escravos são aqueles que os tratam bem porque lhes removem as condições para se emanciparem.

DD: Prática inteligente e violenta essa de usar o açúcar e só depois o chicote. Primeiro, dão-te o açúcar para que tu obedeças; no entanto, se não o fizeres, serás eliminado. Visto dessa forma, é apenas uma meia verdade, e portanto continuo “feliz” que os escravos não sejam tratados de modo tão bárbaro. Às vezes sinto-me contente que ainda exista um sistema liberal na Alemanha. É difícil de aceitar, mas de qualquer forma, é uma almofada que ainda nos protege do pior neste momento. Não importa o quão hipócrita são. Trata-se de uma almofada na sociedade para que não se desmorone tudo de uma assentada, de uma verdadeira catástrofe.

AL: Quais foram os momentos chave que lhe permitiram construir a sua filosofia pessoal? Como se tornou livre – intelectualmente, espiritualmente, etc.?

DD: A minha infância foi difícil. Depois da Segunda Guerra Mundial, a minha família teve de escapar de Berlim e refugiar-se no sul da Alemanha, e quando lá chegamos, perto do Lago Constance, os pais disseram às suas crianças, “Levem daqui essas crianças refugiadas”. Os pais não tinham que comer, e os vizinhos descarregavam a sua fúria sobre nós, as outras crianças perseguiam-nos. O modo como nos tratavam era terrível. Despiam-nos, empurravam-nos para as urtigas e atiravam alcatrão sobre nós. Ou atavam-nos contra um poste e atiravam excrementos sobre nós, e outras coisas desse género. Não havia maneira de uma criança refugiada se escapar destes ataques. Ao mesmo tempo, eu revisitava aqueles morangueiros, e as flores que cresciam nos campo. Aquelas flores violeta junto aos campos de trigo. Esta era a minha casa, rodeado pela Natureza, e foi aí que me encontrei com Deus. E foi através destas experiências que aprendi, para além da crueldade que existe no mundo, que também há cura, um poder superior, e eu decidi segui-lo.
Sempre gostei de voltar à Natureza, e aos locais onde não havia pessoas em redor, para que pudesse estar a sós com Deus uma e outra vez. Até que Deus me disse, “Agora precisas de comunicar com as pessoas”, e a partir daí eu aprendi a fazê-lo.

AL: Esta conexão entre dificuldade e libertação, entre política e espiritualidade, vê alguma ligação possível entre ambos no campo político global? O que precisa de acontecer?

DD: Precisamos de entrar no campo universal de cura e de vida, no qual todos os seres vivos estão interconectados. Chamamos a este campo de “matriz sagrada”. É preciso que saibamos disso. Precisamos de saber que, por exemplo, a comunidade de paz de San José de Apartadó (na Colômbia), está conectada com este campo de cura. E precisamos portanto de um grupo de pessoas que se reúna e que partilhe do mesmo conhecimento, e lhes envie uma mensagem a relembrar “Vocês fazem parte deste campo de cura”.
Cura também consiste na ligação a este campo de cura. Esse é o milagre da Vida. E o que é necessário é que se globalize o milagre da Vida. O campo de forças da Vida original tem de se abrir a todo o planeta. Claro que ele está presente, mas precisamos de conectar com ele de modo consciente. É importante activá-lo, ao ser manifestado em comunidade. Esta é uma tarefa política de uma nova ordem. Se uma massa crítica, mesmo que seja pequena, de pessoas começa a desenvolvê-lo, então o campo global da cura será activado. É muito simples e muito possível, e pois claro, não temos outra hipótese que não seja fazer isto acontecer.

AL: Esta é, de certa forma, uma mensagem para aqueles que querem ouvir e que estão interessados nesta mudança. Mas o que diria às pessoas no poder, ao um porcento que governa o nosso mundo?

DD: Não precisamos de lhes dizer nada em especial. Queremos criar um campo morfogenético global baseado na matriz sagrada, que seja capaz de ultrapassar o sistema existente. Por outro lado, esses tais membros do “um porcento” também são seres humanos. Alguns deles irão compreender numa fase prematura que é uma boa escolha mudar e apoiar o novo sistema. Nos encontros que temos organizado em Portugal, na Colômbia ou nos Estados Unidos, frequentemente temos altos representantes do sistema actual que reconhecem que o modelo capitalista global se tornou insustentável. Temos de construir um lobby público que possa ser ouvido, e que seja mais potente que a proposta das ONG (organizações não-governamentais) e focado em apoiar a Vida.
Precisamos de ser um exemplo para um poder político eficiente na consciência pública, que não seja mais uma oposição, fora ou dentro do parlamento. Isto pertence ao passado. O famoso arquitecto Le Corbusier disse ,”Fazemos a revolução ao apresentar a solução”. Portanto, devemos encontrar um grupo de pessoas influentes que pretendam colaborar nesta solução.

AD: Gostaria de lhe fazer uma pergunta ainda mais controversa: o que pensa do papel das substâncias psicadélicas nesta revolução?

DD: Ao longo da história a Humanidade tem uma cultura de sacramentos, medicamentos e drogas. É importante que tenhamos uma continuação sensível destas tradições globais da medicina que se desenvolveram em todo o Planeta. A questão é: quais plantas, e sob que circunstâncias?
Eu acredito que grupos que pretendam reconectar com a consciência universal devem utilizar tais agentes facilitadores de uma forma muito consciente e seguindo os rituais devidos, como sempre foi feito. Na maioria das culturas, uma relação simbiótica com as plantas medicinais é normal. O que é anormal é o estilo de vida praticado no Ocidente, as doenças mentais dos tempos modernos, e o abuso colectivo de tais plantas sagradas. Precisamos de traduzir o conteúdo experimental das práticas médicas e xamãs em estruturas sociais reais e em práticas de Vida continuadas, e em espiritualidade genuína.

AL: Passemos agora para o que será uma questão mais banal num local como Tamera. Sei que estudam intensamente o papel de Eros. Porque acha que a Esquerda é tão relutante a ele?

DD: Pode parecer que estou a fugir à pergunta, mas tenha paciência. Pode estar relacionado com a biografia de alguns elementos chave na trajectória histórica da Esquerda. Por exemplo, Karl Marx tinha uma mulher-a-dias, enquanto vivia em Trier, a qual ele desejou durante anos. Enquanto caminhava de um lado para o outro, desenvolvendo os seus pensamentos, provavelmente sentia-se profundamente reprimido [riso]. Ele não conseguia lidar com a sua sexualidade. E Marx é apenas um dos vários homens que transpuseram as suas patologias nos seus escritos e ideais, a partir dos quais se desenvolveu o pensamento de Esquerda.
O dogma da Esquerda foi bastante limitado devido ao seu dialecto materialista. A teoria não deixava qualquer espaço à mulher, ao corpo, a Eros. Acreditavam piamente que, com o seu conceito de economia política, seriam capazes de mudar o mundo. Mas estes ideais foram escritos por um jovem sexualmente reprimido como Marx em Trier, a partir das fraquezas e limitações da existência humana. É impressionante como tantos movimentos e ideais globais podem estar ligados a uma pessoa só.

AL: Só consigo imaginar como terá sido, na Alemanha pós-Guerra, e sendo liberal como era, defender tais ideias. Aos dias de hoje, quarenta anos depois, sente que o mundo está a mudar, ou sente uma frustração acumulada?

DD: Não sabia que tardaria tanto tempo. Senti-me bastante frustrado durante muitos anos, sim. Não me relacionava com muitos dos meus camaradas na Alemanha, e não creio que entendiam as minhas ideias. Quando escrevi o livro “Fear in Capitalism” (“Medo no Capitalismo”) em 1972, tornou-se logo num bestseller, foi lido por vários círculos de Esquerda na Alemanha. Pensei que seria o início para um debate mais aberto e compreensivo. No entanto, todos os seguintes livros que escrevi foram rejeitados. Foi uma rejeição em massa. Era uma defesa contra algumas reflexões específicas no campo da sexualidade e das nossas energias mais íntimas. Eles enfatizavam algo diferente que mera economia racional.
As minhas ideias não iam de acordo com as ideias mais consensuais da altura, e portanto senti-me desapoiado, solitário, um lunático. Ano após ano, procurei como me manter fiel ao meu caminho, como poderia continuar. E a Sabine ajudou-me (Sabine Lichtenfels é a parceira de vida de Dieter, e co-fundadora de Tamera).
Não me sentia simplesmente frustrado, era mais complexo que isso. Eu sabia que a qualquer momento poderia haver uma mudança e agora essa mudança está a ocorrer. Há bastante trabalho pela frente, e isso é excitante. Há muitos co-trabalhadores que anseiam por este trabalho, Tamera e Eu estamos numa situação nova. A nova geração está a tomar as rédeas – eles entendem as lacunas do sistema existente e estão a incorporar eles mesmos as soluções.

AL: Sente algum arrependimento, ou tirou algumas lições dessa natureza, da maneira como viveu a sua vida política?

DD: Não, não sinto quaisquer arrependimentos, no sentido linear. Talvez não tenha sido corajoso o suficiente de certa maneira, arrependo-me de não ter aguentado mais, de não ter mais forças para acelerar o processo. Fiz tantos erros que não me arrependo de nenhum [riso]. Por ter sido incompreendido e debaixo de projecções fatalistas durante tanto tempo, sentia-me zangado. Condenei outras pessoas por isso, entrei neste ciclo de hostilidade. Espero não ter tratado ninguém injustamente ao longo do processo, mas se o fiz algumas vezes, é porque não havia outra maneira e por isso peço perdão.

AL: Para mim e muitos outros activistas desta próxima geração, vemos que o que fez é algo de tão corajoso e radical, especialmente no contexto e na era que o fez.

DD: É difícil de se dizer.
A certo ponto, apercebi-me que a minha vida estava a ser guiada. Deixou de ser um exercício de coragem, simplesmente precisei de aceitar aquilo que me era pedido, as decisões que tinha de tomar. A decisão de abandonar a minha profissão, de doar as minhas posses, de desistir do casamento, fazer tudo isso de uma vez foi uma decisão que precisava de tomar. Mas não precisei de coragem, foi o que teve de ser.

AL: Portanto a coragem para se deixar levar e a coragem para escolher a Vida é o nível último de coragem?
DD: Sim, se assim o quer dizer. Necessitamos desse tipo de coragem, sim.

AL: Qual é o seu conselho para a nova geração de radicais, revolucionários e místicos?
DD: Para ajudar a desenvolver esta nova infraestructura, os novos sistemas. Ajudar a estabelecer a rede de contactos de acordo com os talentos e as áreas de cada um. Ajudar a construir comunidades em todo o mundo. O novo sistema precisa de crescer em duas direcções: a espiritual e a política. Devemos ajudar a criar uma via de comunicação entre estas. Devemos criar uma nova linguagem que as una. E devemos mostrar solidariedade para com as variadas forças que protegem activamente o sagrado. Quando comunidades em locais como Standing Rock se aperceberem que estamos a seu lado nesta mudança, eles poderão ver que fazem parte de uma comunidade internacional. Juntos podemos reconectar com o campo de forças da Vida original. Se voltarmos a acreditar nesta comunidade planetária então um campo global se criará, no qual o conhecimento indígena pode ajudar-nos a fomentar uma perspectiva futurológica. E essa é uma grande visão para a qual queremos contribuir.

AL: Estamos muito gratos a si e à Sabine, e obrigado por nos mostrarem o caminho a seguir.

Reprint of the Kosmos Journal, January 2018

Traduzido do Inglês por Mário Miguel Fernandes